O Brasil e a alfabetização digitalO Brasil e a alfabetização digital Maria Helena Bonilla Jornal da Ciência, Rio de Janeiro, 13 de abril de 2001, p.7 Alfabetização digital é hoje, no contexto das chamadas Sociedades da Informação, um dos pontos mais enfatizados. No Brasil, o Programa SocInfo dá prioridade à informatização da economia investindo maciçamente na universalização do acesso às tecnologias da informação e comunicação (TIC) e na preparação dos indivíduos para fazerem uso delas, questões consideradas necessárias à preparação do ambiente onde o setor econômico poderá desenvolver-se. O Livro Verde do Programa dá grande ênfase à alfabetização digital, como a habilidade necessária para que a população possa fazer uso das TIC, mas não precisa muito bem o significado desse termo. Nem no capítulo que trata da Educação na Sociedade da Informação, isso fica claro. Diz apenas que a alfabetização digital precisa ser promovida em todos os níveis de ensino por meio da renovação curricular, fazendo parte da capacitação necessária para atuar no âmbito do uso das TIC, sendo que para o âmbito da aplicação e geração, outras competências são necessárias. Dá a entender que alfabetização digital é um processo "meramente" de compreensão de informações. Apesar do "meramente", ligar alfabetização à compreensão já é um avanço, pois historicamente é considerado alfabetizado aquele que apenas codifica e decodifica símbolos, independentemente do processo de compreensão. Destaca ainda que é preciso aumentar drasticamente o nível de alfabetização digital no país, condição necessária para que aumente o grau de penetração das novas tecnologias na sociedade brasileira, de forma que esta sociedade esteja mais bem preparada para as mudanças em curso. Mas para quais mudanças a sociedade precisa estar preparada? Se for para as transformações generalizadas que estão acontecendo na sociedade contemporânea, aumentar o nível de alfabetização digital não é suficiente. É no capítulo que trata da Universalização de Serviços para a Cidadania que esse conceito é melhor explicitado. Diz que a alfabetização digital está relacionada à aquisição de habilidades básicas para o uso de computadores e da Internet, habilidades que aumentem as oportunidades no mercado de trabalho. Ou seja, ser alfabetizado digital é ser usuário de serviços oferecidos pelas novas tecnologias. A meta prevista pelo Programa é que um em cada cinco brasileiros atinja um nível de alfabetização digital mínimo até 2003. Mas o que é mesmo um nível de alfabetização digital mínimo? Está indicada a oferta de treinamento básico para que a população possa adquirir essa habilidade nesse curto espaço de tempo, sugerindo inclusive o (auto)aprendizado, disponível a custo zero (em vídeo e/ou na rede), cursos livres, presenciais e a distância, testes de habilitação reconhecidos pelo mercado, como formas de promover essa "alfabetização" aligeirada. Como pode-se perceber, a previsão de investimentos na capacitação da população é muito pequena, se é que podemos chamar alfabetização digital de "capacitação". Como a nova economia, digital, necessita de um grande número de consumidores para não perder negócios, entende-se que as comunidades de baixa renda constituem uma parcela significativa desses consumidores, sendo necessário prepará-los para poderem atuar na nova sociedade de forma que esse modelo econômico não corra o risco de estagnar-se. Além disso, considera-se que as habilidades necessárias para ser esse consumidor são as mais elementares possíveis – basta ser capaz de navegar e efetuar compras on-line. Daí a falta de uma política para democratização do acesso - entendendo democratização para além da universalização do acesso e da alfabetização digital; como participação efetiva, onde os indivíduos têm capacidade não só de usar e manejar o novo meio, mas também de prover serviços, informações e conhecimentos. Portanto, na concepção do Programa SocInfo no Brasil, a alfabetização digital consiste em ter habilidades básicas para poder usar as novas tecnologias numa perspectiva de usuário consumidor de bens, serviços e informações. O problema não está em conceber "alfabetização digital" nessa perspectiva, e sim em prever que isso é suficiente para considerar o indivíduo como "incluído" na Sociedade da Informação. É evidente que na perspectiva economicista, estar "incluído" significa ser consumidor. No entanto, inclusão é um conceito mais abrangente do que isso, significa que aquele que está incluído é capaz de participar, questionar, produzir, decidir, transformar, é parte integrante da dinâmica social, em todas as suas instâncias. Como conseqüência dessa visão reducionista, as necessidades educacionais são minimizadas, uma vez que basta cursos de curta duração para "capacitar" a população a fazer uso das tecnologias. Em momento algum é considerado que essas habilidades básicas são adquiridas em alguns poucos contatos com a tecnologia, sem a necessidade de cursos de treinamento. Também não é considerado que a necessidade educacional básica da população brasileira é alfabetização sim, mas em sentido amplo, em todas as áreas, abrangendo não só os processos de codificação, decodificação e compreensão, mas também processos de análise, organização, produção e socialização de informações e conhecimentos. E para isso, uma política de educação de qualidade é fundamental. O próprio Livro Verde aponta as limitações da concepção que toma a alfabetização digital como indicador suficiente para considerar o indivíduo como incluído na Sociedade da Informação. O capítulo que trata da Universalização de Serviços para a Cidadania aponta a necessidade de, além da alfabetização digital, capacitar as pessoas para a utilização das mídias em favor dos interesses e necessidades individuais e comunitárias, com responsabilidade e senso de cidadania, permitindo que as pessoas atuem como provedores dos conteúdos que circulam na rede, sendo que, para isso, além da universalização do acesso, é necessário também a democratização do uso. O capítulo que trata da Educação na Sociedade da Informação também aponta nessa direção ao afirmar que as pessoas, embora "alfabetizadas" no mundo digital, necessitam de "algo mais para efetivamente funcionar na sociedade da informação". Traz a noção de fluência como sendo a "capacidade de reformular conhecimentos, expressar-se criativa e apropriadamente, bem como produzir e gerar informação". No entanto, não explora essa questão. Ao contrário, ao afirmar que essa capacidade está reservada a profissionais com conhecimentos especializados em TIC, aprofunda a polarização: alfabetização digital para a grande maioria da população, os consumidores, e fluência para a pequena parcela que consegue realizar curso de nível superior. Isso significa que somente estes terão a oportunidade de produzir e expressar-se, de efetivamente ser cidadãos? (Re)construir conhecimentos, expressar-se criativa e apropriadamente e produzir e gerar informações são capacidades que qualquer ser humano pode desenvolver, com ou sem as TIC. No entanto, essas tecnologias potencializam essas capacidades e abrem espaço para o surgimento de outras, independentemente de termos ou não um curso especializado. Portanto, é possível trabalhar com a noção de fluência em TIC em todas as esferas sociais, relacionando com o conceito de cidadania e enfatizando o papel da Educação nesse processo, educação que acontece em todos os espaços de aprendizagem, formais ou não, e não apenas em cursos especializados.